Cumprimento da Lei? Ou racismo religioso disfarçado?
Foto: Mãe Ju – Casa de Mariana / Crédito – Sandro Barbosa
No Brazil colônia e até há poucas décadas, qualquer manifestação cultural ou religiosa cujas origens estivessem ligadas aos povos preto e ameríndio estava fadada à perseguição institucional pelos poderes constituídos. A Constituição de 1988 pretendia mudar de uma vez por todas este quadro ao garantir a liberdade de culto, de consciência e de crença, como princípio fundamental, dentre outros grandes avanços – pretendia, mas às vezes parece que fracassou.
Já tratamos aqui anteriormente do caso de Mãe Jú (Jussilene Maia), de Belém do Pará. Mulher preta, pobre, umbandista, uma cidadã brasileira acuada, constrangida e amedrontada pela opressão, prepotência e desrespeito que já não deveriam existir há séculos, mas pelo menos desde 1988 não poderiam mais assumir nunces institucionais como neste caso.
Pois bem, às vésperas dos festejos natalinos, esta mulher preta, pobre e umbandista teve sua conta bancária bloqueada por uma decisão judicial equivocada, para se dizer o mínimo. O motivo? Por exercer o direito constitucional de expressar sua fé.
A intolerância e o desrespeito não tem limites, e neste caso, aparentemente a postura, a estupidez e o ódio dos intolerantes conseguiram contaminar até mesmo o Ministério Público do estado do Pará. Isto porquê, com base em supostas provas totalmente infundadas e produzidas unilateralmente por alguns vizinhos do Terreiro, o ilustre Promotor titular da 1ª Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Habitação e Urbanismo de Belém, requereu as sanções e o juiz do caso atendeu ao pedido, resultando no bloqueio da conta bancária de Mãe Ju para pagamento de multas por descumprimento de uma decisão anterior que a impedia de exercer sua fé, posto que proibia o uso de atabaque, tambores ou quaisquer instrumentos litúrgicos, bem como de falas em timbre alto que o MP já classificou anteriormente de “barulho” e poluição sonora.
Quando este redator se refere às provas como infundadas, sem entrar no “juridiquêz“, é suficiente dizer que tratam-se de vídeos gravados por pessoas não identificadas, supostamente vizinhos do Terreiro, mas sem comprovar o local, data e horário da gravação, referindo ser noite enquanto o próprio vídeo mostra a luz do dia, um “aplicativo decibelímetro” em um smartphone que chega a ser piada, já que não se trata de um instrumento de perícia, e assim por diante…
Tais provas são claramente imprestáveis, infantis, e provavelmente um estudante de 2º semestre de direito já sabe de sua inutilidade, e ainda assim foram usadas pelo MP como fundamento para pedir a multa e o fechamento do Terreiro, pedidos parcialmente deferidos pelo juízo:
A situação posta revela, no mínimo, um grande e lamentável erro a que foram induzidos o MP e o Juízo, veja-se que o MP pede a aplicação de multa e a suspensão das atividades do Terreiro, embora não deferido tal pedido pelo magistrado, que se limitou à aplicação da multa.
Não é demais lembrar que a mesma Constituição Federal de 1988 que consagrou o direito à liberdade de culto, em seu artigo 127 atribuiu ao MP o encargo de ser fiscal da Lei: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.“ Pois bem, o direito à liberdade de culto se enquadra nesta previsão, aliás, a teor do artigo 5º da Constituição, é dever do Estado, e portanto do MP, protegê-lo:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(..)VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Não parece razoável que ao integrante do MP seja dado o direito de agir levianamente, mas sim de fiscalizar a aplicação da Lei, e em casos como este, ponderar entre os princípios e direitos tutelados, encontrando o caminho da solução sem afrontar a liberdade de culto de qualquer religião.
Fica a pergunta sem resposta até o momento: Não fosse um Terreiro, mas uma Igreja, onde é público e notório que o som alto e as falas igualmente afrontam a vizinhança, já que algumas lideranças literalmente “berram” como se pretendessem ser ouvidos por uma divindade surda, a postura ferrenha e obstinada destes vizinhos e do MP seria a mesma? Ou só é “barulho” porque emitido de um Terreiro, lugar de gente preta, pobre…
A redação da Radio Atabake tentou contato com a 1ª Promotoria acima citada e até o fechamento desta matéria não obteve resposta, o espaço porém permanece aberto caso sobrevenha manifestação.